Quando se fala da política contemporânea, é muito comum ouvirmos falar também de polarização. Mas o que é polarização política e por que ela é tão preocupante?
Na política, o significado de polarização está relacionado a uma divisão da sociedade em polos, que representam posições diferentes sobre um determinado tema. Porém, essa palavra tem sido usada de modo negativo, uma vez que passou a se referir a disputa entre dois grupos que se fecham em suas convicções e não estão dispostos ao diálogo.
Neste texto, a Politize! vai explorar esse sentido para entender qual a sua origem e suas consequências para a democracia.
De onde surge a polarização?
Apesar de ser um fenômeno muito falado hoje em dia, o melhor modo para começarmos a entender a polarização é olhar para trás.
Como qualquer outro animal, o corpo do ser humano se modificou ao longo do tempo com um objetivo claro, apesar de inconsciente: adaptar-se às circunstâncias e ao ambiente para sobreviver o maior tempo possível. Uma das estratégias utilizadas era se juntar a outros indivíduos e formar grupos.
Para ser aceito em um grupo, era preciso se mostrar digno de confiança, o que por sua vez exigia lealdade. Ela era fundamental para que um agrupamento de indivíduos agisse de modo coordenado e organizado. A grande questão é que ela , quando levada a fundo, implica em abrir mão da própria individualidade para aceitar as normas, crenças e ideias do grupo.
Com isso, podemos dizer que nosso cérebro foi programado para encontrar uma turma, e se adaptar a ela. O grupo passa a fazer parte da identidade individual. Dessa forma, existe um prazer em ser fiel ao grupo, enquanto mudar de ideia e se opor ao grupo com o qual nos identificamos é altamente desconfortável.
Mas fazia sentido: naquela época, era uma questão de vida ou morte. A sobrevivência dependia de ser leal a um grupo e de tratar adversários como inimigos mortais. Hoje em dia, essa estratégia pode trazer consequências negativas.
Veja também nosso vídeo sobre polarização Lula x Bolsonaro!
Por que a polarização é um problema na democracia?
Ao longo dos séculos, a humanidade se organizou de formas complexas e criou sistemas para organizar o poder. Uma das inovações foi a democracia.
Por meio da democracia, não seria necessário usar a força para chegar ao poder: a disputa não aconteceria por meio da violência, mas pela discussão de ideias e apresentação de propostas para melhorar a vida de todos. Quem convencesse mais cidadãos e conseguisse mais votos chegaria aos postos de comando.
Não é à toa que a democracia vai muito além do voto. Como apontam Steven Levitsky e Daniel Ziblatt no best-seller “Como as democracias morrem”, ela requer respeito a regras comuns, reconhecimento da legitimidade dos adversários (ou seja, tratá-los como competidores legítimos dentro de uma disputa igualitária), tolerância e diálogo.
O excesso de polarização compromete todos esses quesitos. Em uma sociedade concentrada em dois lados radicalizados, adversários são vistos como inimigos, o diálogo não é incentivado – é até condenado – e transgredir as regras parece justificável.
Quem procura se manter fora desses dois grupos, apresentando outras visões e ideias, ou mesmo quem defende que ambos os lados têm suas falhas e virtudes, é tratado como “isentão”. As alternativas que fogem às duas apresentadas acabam sendo invalidadas.
Das redes sociais às guerras culturais
O ambiente criado nas últimas décadas favorece a tendência de polarização. É possível reunir alguns fatores para explicar o crescimento da polarização no mundo.
Redes sociais
O primeiro fator que podemos citar são as redes sociais. Algoritmos fazem parte do ecossistema digital e são eles que determinam que conteúdos chegam em cada uma das pessoas. Os assuntos e conteúdos que aparecem são aqueles que estão de acordo com os posicionamentos e visão de mundo de cada usuário..
O problema é que esse processo resulta na criação de bolhas. Cada indivíduo acaba tendo um contato majoritário com opiniões, notícias, artigos, vídeos e imagens que reforçam suas crenças. Pontos de vista diferentes, por outro lado, têm chance mínima de furar as bolhas
O resultado: cada pessoa consolida e reforça as ideias que já tem e passa a ter mais certeza de que está certa em seus julgamentos. As visões discordantes se tornam cada vez mais estranhas, absurdas e, no ponto máximo, inaceitáveis.
Políticos e lideranças
A polarização crescente é promovida por aqueles que se favorecem dela. Políticos, partidos e grupos mais extremistas se alimentam do descontentamento e da intolerância para ganhar mais apoio a suas ideias. Afinal, medidas extremas têm maior chance de aceitação quando se vê o outro grupo como um inimigo perigoso que é preciso eliminar, ao invés de um concorrente no debate.
Além disso, quanto pior o “inimigo” parece, mais soa justificável quebrar regras. Não à toa, um estudo mostrou que a polarização favorece a ascensão de líderes populistas “iliberais”, ou seja, que têm pouco apreço às normas democráticas e às limitações de poder.
Guerra cultural
Esse termo se refere a uma mudança no debate político ocorrido nos Estados Unidos a partir da década de 1990, e posteriormente no Brasil. O foco da disputa deixou a economia e as políticas públicas e passou para questões relacionadas à cultura, costumes e comportamento.
Por exemplo: os dois lados dão menor importância a propostas concretas, como um plano de política econômica, e colocam no centro da discussão questões de cunho moral, como a descriminalização do aborto e a educação sexual em escolas. O professor e pesquisador Eduardo Wolf, autor do livro “Guerra cultural: ideólogos, conspiradores e novos cruzados”, define a guerra cultural como “uma luta pela alma da nação”.
Dois grupos, geralmente conservadores e progressistas, discordam a respeito da identidade de seu país ou sociedade e veem o antagonista como um inimigo que precisa ser silenciado. Ou seja, a tensão e a polarização se tornam maiores.
A polarização na prática
Para entender melhor as consequências da polarização, é útil analisar como ela afeta as sociedades e seus indivíduos.
No nível individual, a ciência já descobriu que, em muitos casos, uma opinião formada sobre determinado assunto importa mais do que os fatos relacionados a ele. Isto é, evidências têm pouco poder para mudar a visão de mundo de uma pessoa. Isso acontece por meio do “raciocínio motivado”. O termo se refere ao modo como tendemos a dar mais valor a fatos e informações que reforçam nossas opiniões e menos valor àqueles que as contrariam.
Um ambiente polarizado, sem tolerância e respeito a opiniões discordantes, reforça esse comportamento. O ambiente é criado pela propensão a sermos fiéis a grupos e, por sua vez, reforça essa propensão, como num ciclo. Nesse sentido, é possível entender porque fake news se espalham com facilidade: elas se aproveitam da nossa vontade de acreditar em notícias que corroboram nossas ideias, independentemente da sua veracidade.
A fidelidade a um grupo, principalmente quando o assunto é política, também está relacionada à identidade que assumimos. Por conta disso, é mais difícil mudar de opinião a respeito de temas políticos do que aqueles relacionados a outros campos, como a ciência. Porém, quando uma discussão científica se aproxima da política, ela também acaba sendo envolvida na polarização.
Dessa forma, vemos casos como as divergências entre eleitores republicanos e democratas a respeito da pandemia de coronavírus nos Estados Unidos em 2020. Outro exemplo foi dado pelos políticos de ambos os partidos: alguns republicanos, incluindo o então presidente Donald Trump, se recusaram a usar máscaras para conter o vírus. Democratas, por sua vez, tentaram impor o uso.
Além da busca pela verdade factual, o excesso de polarização afeta também as soluções para problemas da sociedade. Um debate polarizado impede as análises profundas e cheias de nuances que questões complexas, como as do mundo em que vivemos, exigem.
No Brasil, os pesquisadores Pablo Ortellado e Márcio Moretto Ribeiro identificaram uma mudança no comportamento de usuários do Facebook. Quando o assunto era política, havia, até 2013, seis principais comunidades, divididas por suas preferências e prioridades. A partir das manifestações de junho daquele ano e das eleições presidenciais de 2014, essas comunidades se dividiram em apenas dois grupos mais afastados e polarizados: progressistas e conservadores.
Em relação à política institucional, o processo decisório corre o risco de travar quando dois lados não conseguem formar acordos mínimos. Essa consequência é mais clara nos Estados Unidos, onde apenas dois partidos disputam o poder e, cada vez mais distantes, chegam a parar o país em votações fundamentais.
Por fim, como demonstram os autores do já citado “Como as democracias morrem”, a polarização, em último caso, leva à erosão das instituições e das práticas que compõem o sistema democrático, além de abrir espaço para lideranças iliberais.
A polarização tem seu lado bom?
Apesar de todas as opiniões a respeito dos efeitos deletérios da polarização, há quem a considere positiva – ou que, pelo menos, tenha aspectos benéficos. Nelson Ferreira Marques Júnior, doutor em história política do Brasil, defendeu essa posição em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo.
Segundo ele, a divisão da sociedade em dois polos distintos faz parte do desenvolvimento da democracia e não pode ser considerada um mal em si. A disputa política seria a única forma de construir conhecimento e encontrar soluções para problemas comuns. A polarização passa a ser negativa quando é “contaminada pelo ódio e pelos discursos generalistas nutridos apenas pelo senso comum”. Ou seja, enquanto ela está dentro dos “parâmetros democráticos”, não deve ser condenada.
Analisando a realidade dos Estados Unidos, o jornalista Ezra Klein, autor de “Why we are polarized”, aponta que a polarização e o crescente distanciamento entre democratas e republicanos teve uma consequência positiva: a adoção, por parte dos democratas, das chamadas pautas identitárias, especialmente a luta contra o racismo.
Para Ezra Klein, a polarização deu força a movimentos como o Black Lives Matter, que protesta contra o racismo e a violência policial contra negros norte-americanos, e impulsionou políticos democratas a colocarem essa questão como prioridade.
Além disso, “a alternativa à polarização geralmente é a supressão”, de acordo com o jornalista. Isso vai ao encontro do que afirmou Nelson Ferreira Marques Júnior: “gerar consensos sem as polarizações é aceitar sempre o status quo”.
É possível diminuir a polarização?
A situação é complicada, especialmente, em períodos de eleição, mas existem práticas que podem ser adotadas para diminuir a polarização e estabelecer um diálogo saudável.
Nós somos falhos
Como sabemos, o cérebro humano pode nos enganar com facilidade. Isso significa que todos estão sujeitos a estarem equivocados em algum momento.
Conhecer as falhas em nossos raciocínios e visões de mundo nos torna mais abertos a argumentos discordantes, que podem inclusive nos fazer rever certos pontos e evoluir intelectualmente.
Como estou pensando?
Tão importante quanto estar atento às falhas em nossas visões e argumentos é entender como eles são construídos. Chegamos às conclusões por meio da análise de fatos e evidências? Demos pesos iguais (ou pelo menos parecidos) às opiniões divergentes sobre o assunto?
Vale lembrar de uma regra simples. Primeiro, deve-se analisar as informações, fatos e evidências, para depois formar uma opinião. É pensar como um cientista, que formula hipóteses a partir da análise do conhecimento disponível e coloca essas hipóteses à prova.
Também é importante ter em mente uma frase do jornalista e escritor Christopher Hitchens: “não importa o que você pensa, mas como você pensa”.
Autoconhecimento também é conhecimento.
Ler a respeito de como funciona nosso cérebro e como ele está propenso à polarização é uma forma de nos mantermos alertas às armadilhas que pregamos a nós mesmos.
Por isso, são importantes iniciativas como a série a respeito desse tema feita pelo site Wait But Why (que está disponível apenas em inglês) e o Despolarize, projeto que busca diminuir a polarização nas redes sociais.
As pessoas podem mudar de opinião
Ao longo deste artigo, pode ter ficado a impressão de que o convencimento por meio de fatos e argumentos sólidos é quase impossível, mas esta não é toda a verdade.
O raciocínio motivado e a lealdade a grupos têm grande influência na forma como criamos nossas opiniões, mas também é verdade que temos o desejo de manter visões corretas a respeito do mundo. Nesse sentido, evidências e consensos científicos têm sua importância e influência.
Estudos mostram que uma forma eficiente de convencer quem tem opiniões discordantes não é o confronto, mas o uso dos valores da própria pessoa. Por exemplo, um conservador tem maiores chances de aceitar uma proposta progressista, desde que ela venha “embalada” em um discurso que usa os valores conservadores – e vice-versa.
Os valores importam
O item anterior mostra como é importante se colocar no lugar daquele com quem debatemos. Além de aumentar nossas chances de convencimento, essa atitude também nos abre para enxergarmos pontos positivos em visões diferentes.
Sem maniqueísmo
É essencial lembrar que, na grande maioria dos casos, as desavenças acontecem entre pessoas que têm boas intenções e buscam uma sociedade melhor. Ninguém deve ser considerado inimigo só por pensar diferentemente de nós. Afinal, o mundo é complexo e não se divide de forma maniqueísta, uma briga entre bem e mal.
E aí, o que achou do texto? Conta pra gente nos comentários!
Referências:
- AUN USP – polarização no meio digital dificulta diálogo social
- Folha de S. Paulo – a face positiva da polarização
- Folha de S. Paulo – por que a polarização favorece populistas?
- Galileu – gráficos mostram polarização política nas redes sociais no Brasil
- Nexo – como usar valores do outro para convencê-lo de uma ideia
- Nexo – o que é ‘guerra cultural’. E por que a expressão está em alta
- O Estado de S. Paulo – ‘redes sociais têm de responder pela polarização que causam’
- The Conversation – facts versus feelings isn’t the way to think about communicating science
- The New York Times – our culture of contempt
- Vox – congression dysfunction
- Vox – in praise of polarization
4 comentários em “O que é polarização e por que é prejudicial à democracia?”
Muito bom. Imparcial. De fácil digestão intelectual. Abrindo a mente para enxergar o sistema de uma forma mais ampliada. Sou leigo nessas questões e isso serve sem dúvida como sumário para melhor interação nos acontecimentos das “políticas públicas” moderna.
SIM
!!!
No caso do Brasil, acho que seria interessante destacar, em outro momento talvez, que não houve um movimento deliberado de produzir polarização por parte da ala progressista, mas de um novo grupo que surgiu no vácuo deixado pela antiga e em estagnação direita brasileira. Antes desse momento, de um ressurgimento do fascismo no Brasil, os diversos grupos políticos existentes passaram por um longo período de discussões, debates, consensos e discordâncias, porém, sem as radicalizações promovidas pela nova extrema-direita que está ficando conhecida como bolsonarismo. Desse ponto de vista, vejo menos uma polarização e mais a radicalização de um grupo e a suposta única solução a ele se enfrentando nos pleitos eleitorais. Ainda é importante lembrar, que para além das pautas morais, esse novo grupo levanta bandeiras que de encontro a direitos universais, promovendo violência política, xenofobia, preconceito racial e de gênero, retrocessos na democracia, além de de promoverem uma enxurrada de mentiras sobre temas diversificados.