Você deve ter lido recentemente notícias sobre a nomeação de Moreira Franco, investigado na Operação Lava Jato, para o cargo de Ministro de Estado. Como esse cargo tem o benefício do chamado foro privilegiado, muitos afirmaram que a nomeação ocorreu para dificultar uma eventual punição contra Franco, que foi citado em delação premiada de um ex-diretor da Odebrecht. Feita a nomeação, choveram ações judiciais tentando anulá-la. O fundamento dessas ações era o de que a nomeação seria inválida por desvio de finalidade.
Todos sabemos o que ocorreu em seguida. Algumas decisões judiciais acolheram esse argumento, outras não. A questão chegou ao Supremo Tribunal Federal e, na situação em que a coisa se encontra até o momento, o ministro foi mantido no cargo. Concordemos ou não com os caminhos que a coisa tomou, até mesmo para formarmos uma opinião consistente quanto a essa questão, é necessário entender o que a expressão “desvio de finalidade” quer dizer.
O GESTOR PÚBLICO NÃO FAZ APENAS O QUE QUER
Gerir a coisa pública não é o mesmo que gerir uma empresa privada ou a própria vida. Podem existir muitas divergências no direito, assim como existem na política, mas todos concordariam quanto a esse ponto. Uma das características típicas da gestão pública é a necessidade de que o gestor motive suas decisões e suas atitudes enquanto administra a coisa pública. Ele tem que justificar o que faz e por que faz.
Mas, nem toda justificativa serve para motivar adequadamente uma decisão ou ação do gestor. Essa justificativa deve ser compatível com o nosso direito, com o que encontramos nas leis e na Constituição. Por exemplo, se o gestor vai adquirir uma caneta para a repartição, ele não pode comprar montblancs de R$ 3.000,00 e justificar a compra afirmando que ela é necessária por tratar-se da única caneta compatível com o nível social das pessoas que trabalham ali.
Vejam, a justificativa, em si, não é absurda. Há pessoas, em sua vida privada, que guiam suas escolhas dessa forma, sem problemas. No mundo privado, essa forma de escolha é indiferente para o direito. No mundo privado (das pessoas, famílias e empresas), em suma, a regra é a liberdade.
MOTIVAR É MESMO TÃO IMPORTANTE?
Você pode estar se perguntando: motivar é mesmo tão importante? O importante não é resolver os problemas do cidadão, seja lá como for? Bom, não é segredo que o Brasil é um país de raiz amplamente patrimonialista. É para evitar que a máquina pública seja usada como uma extensão da cozinha de casa que serve essa obrigação de motivar.
Não que essa obrigação seja uma exclusividade brasileira. Na verdade, ela não nasceu aqui, foi importada. Nós importamos, também, o que ficou conhecido como teoria dos motivos determinantes. Segundo essa teoria, todos os atos do gestor público devem ser justificados.
Nessa justificativa, devem constar as razões de fato e de direito (fundamento legal) que levaram o gestor público a decidir ou atuar daquela determinada maneira. Se esses motivos não forem compatíveis com o que foi decidido ou feito, ou se for descoberto posteriormente que aqueles motivos expostos pelo gestor não eram reais, o ato do gestor deve ser considerado inválido.
O QUE É, ENTÃO, O DESVIO DE FINALIDADE?
Feitas essas breves considerações, você já pode entender com clareza o que é desvio de finalidade. Desvio de finalidade é a situação na qual um gestor público age ou decide fora das finalidades que a lei e a constituição estabelecem para a máquina do Estado.
Ele pode haver deixado de expor os motivos dos seus atos. Ele pode ter exposto motivos incompatíveis com as decisões e ações tomadas. Os motivos (mesmo que não tenham sido explicitados pelo gestor público) podem ser, ainda, incompatíveis com as leis e com a constituição. Em todos esses casos, a decisão ou o ato mal fundamentados não têm validade, quer dizer, não produzem efeitos.
INDICAÇÕES DE FRANCO E LULA: HOUVE DESVIO DE FINALIDADE?
No início deste texto, tratamos de uma indicação para ministro de Estado. Não foi a primeira vez que isso gerou uma grande polêmica. Basta lembrar do caso da nomeação do ex-presidente Lula para a Casa Civil, no final do governo Dilma Rousseff. Afinal, houve desvio de finalidade nesses casos?
A primeira coisa que você precisa saber quanto a isso é que a nomeação de ministros de Estado é um dos atos em que o governo goza de maior liberdade. Não se vê por aí um Presidente da República justificando que nomeou tal ou qual pessoa porque ela tinha um currículo maravilhoso. A Constituição (art. 87) diz apenas que, para ser ministro, a pessoa deve ser maior de 21 anos e estar no gozo de seus direitos políticos. Tanto que vivemos num presidencialismo de coalizão em que os indicados para cargos do Executivo normalmente vêm do Legislativo, sem qualquer exigência de experiência prévia setorial (digamos, pode existir um Ministro de Pesca que nunca pegou um peixe!).
Isso não quer dizer que a liberdade de nomeação é completa. Apesar de ter caráter eminentemente político, não é possível nomear alguém para ministro de Estado para que ele possa ter o benefício do foro privilegiado. Vejam: em regra, se ele for ministro, terá foro privilegiado. O que não é possível é que se nomeie alguém porque ele quer (ou precisa) do benefício do foro privilegiado. A nomeação deve ocorrer porque ele é a pessoa mais indicada para a gestão daquela pasta, sejam quais forem os critérios utilizados para a escolha.
No caso do ministro Moreira Franco, assim como no caso de Lula, a questão que devemos responder é justamente essa: por que eles foram nomeados para esses ministérios? Se a resposta for “porque seriam bons ministros, de acordo com o Presidente que realizou a nomeação”, eles deveriam ter sido mantidos nos respectivos cargos. Se a resposta é “para ter foro privilegiado e escapar da Lava Jato”, então a coisa é diferente.
No caso do ex-presidente, o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes se manifestou pela invalidade da nomeação. A decisão do ministro reflete a identificação, no seu entendimento, da existência de elementos suficientes para a caracterização da intenção de, mediante nomeação, ficar protegido de eventual prisão preventiva proferida pela 1ª instância (a do Juiz Sérgio Moro).
No caso de Moreira Franco, houve uma decisão monocrática (sem consulta a todos os ministros do STF) do ministro Celso de Mello no sentido de que esses elementos de desvio de finalidade não estariam identificados. Essa decisão depende de confirmação pelo colegiado (em que votam todos os ministros).
A existência de diferenças entre esses dois casos, e que justifiquem decisões tão divergentes, tem gerado polêmica entre os especialistas. Sem dúvida, a identificação do desvio de finalidade é muito difícil e depende da apreciação de elementos complexos, envolvendo coisas tão difíceis de provar como a “intenção” de um ato.
Mas, havendo consenso entre os ministros quanto à existência de desvio de finalidade, o ato de nomeação será inválido. Se o consenso for pela inexistência de tais elementos, a nomeação será mantida. Quem dirá isso é o Supremo, que irá anular ou manter a nomeação realizada pelo atual Presidente da República, Michel Temer.
COMO COMBATER O DESVIO DE FINALIDADE?
Mas, o que podemos fazer contra esse tal de desvio de finalidade? Bom, se concordamos que o desvio de finalidade deve ser combatido, o direito brasileiro nos dá diversas ferramentas para atacá-lo. Vamos destacar uma delas, porque é a que pode ser usada por todos: a ação popular.
A ação popular foi criada pela Lei Federal n° 4.717, ainda em 1965. Já é uma senhora, portanto. Através dela, qualquer cidadão pode pedir à Justiça que anule um ato que padeça de desvio de finalidade, que é definido pela lei como aquela situação em que “o agente [público] pratica ato visando a fim diverso daquele previsto, implícita ou explicitamente” nas leis e na Constituição.
Além disso, o Ministério Público tem seus instrumentos próprios de ação. Se souber de algo errado, algum ato de gestor público que padeça de desvio de finalidade, denuncie ao Ministério Público.
Referência: El País