Artigo Quinto

PUBLICADO EM:
julho 2, 2019

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INCISO VIII – A ESCUSA DE CONSCIÊNCIA

Você sabe o que é a Escusa de Consciência? A Politize! explica e analisa esse conceito, que garante que não haverá privação de direitos por qualquer crença religiosa ou convicção filosófica ou política.

INCISO VIII – A ESCUSA DE CONSCIÊNCIA

Apesar de soar complexa, a escusa de consciência é uma garantia concedida ao cidadão pela Constituição de 1988 no inciso VIII do artigo 5º. Essencialmente, a escusa de consciência é o direito do indivíduo de não cumprir um serviço obrigatório por razões relacionadas à sua crença filosófica, religiosa ou política. Neste texto, explicaremos como esse inciso funciona na prática e em quais situações ele pode – ou não – valer.

O artigo 5º é uma das partes mais importantes de nossa Constituição Federal (CF) e nele estão previstos direitos que têm o objetivo de assegurar uma vida digna, livre e igualitária a todos do país. 

Neste conteúdo, falaremos sobre o inciso VIII, que trata da escusa de consciência. Para conhecer os outros direitos, confira a página do Artigo Quinto, um projeto desenvolvido pela Civicus e a Politize! em parceria com o Instituto Mattos Filho.

COMO FUNCIONA A ESCUSA DE CONSCIÊNCIA?

O artigo 5º, em seu inciso VIII, afirma que:

“VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;”

O termo “escusa de consciência” ou “objeção de consciência” não é usado com frequência em nosso cotidiano, mas é um direito fundamental importante, garantido pela Constituição de 1988. Para entender seu significado, alguns pontos são importantes, como o sentido da palavra “escusa”. 

Escusa nada mais é que um sinônimo para “desculpa”, uma explicação para evitar a obrigação de fazer algo – o que não representa algo negativo, mas uma justificativa religiosa, filosófica ou política para não realizar aquela atividade.

Tendo isso em mente, agora vamos entender esse direito fundamental como um todo.

Segundo a escusa de consciência, nenhuma pessoa pode ser privada de seus direitos em virtude de suas crenças filosóficas, religiosas ou políticas. Porém, se o indivíduo  negar-se a realizar uma obrigação legal – que é imposta a todos – e também não fizer o serviço alternativo previsto em lei, ele não fará jus a essa garantia constitucional. 

Para ilustrar essa situação, podemos imaginar uma situação parecida com a retratada no filme Até o Último Homem (2016). O longa-metragem conta a história real de Desmond T. Doss (Andrew Garfield), um socorrista do exército estadunidense durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). 

Por ser membro da Igreja Adventista do Sétimo Dia, ele se recusou a pegar em armas durante o combate. Mesmo assim, o Estado permitiu sua participação na guerra, delimitando a ele uma função médica dentro dos campos de batalha. Desmond, mesmo desarmado e sozinho, conseguiu salvar 75 soldados, o que lhe rendeu a Medalha de Honra do congresso estadunidense. 

No caso retratado no filme, uma convicção religiosa permitiu a um cidadão servir ao exército de forma diferente da exigida dos demais soldados, tendo sido, por meio da escusa de consciência, remanejado de função.

É isso que prevê o inciso VIII: se uma crença religiosa ou de convicção filosófica ou política impede que alguém cumpra uma obrigação legal imposta a todos, ela somente pode ter seus direitos restringidos pelo Estado caso se recuse a cumprir prestação alternativa, prevista também em lei. 

Um exemplo é a restrição de direitos políticos, o que faria com que alguém que recusasse tanto o serviço militar quanto o seu serviço alternativo não pudesse votar nem se candidatar a algum cargo público. 

A REALIDADE DO INCISO VIII NO BRASIL

Em nosso país, a escusa de consciência é majoritariamente usada no alistamento obrigatório no serviço militar. Segundo a Lei do Serviço Militar (Lei n. 4.375/1964), ao completar 18 anos, todos os cidadãos brasileiros do sexo masculino são obrigados a se alistar nas forças armadas

Já mulheres e eclesiásticos, em tempos de paz, ficam isentos desse dever, mas ficam sujeitos a outros encargos que a lei lhes atribuir (art. 143, § 2º, da Constituição). Por eclesiásticos, entende-se os membros da igreja, como o clero, padres, numerários, entre outros.

Portanto, imagine um cidadão brasileiro prestes a completar sua maioridade. Ele deve se alistar, mas a religião que segue não permite o envolvimento em atividades militares, pois as ações do exército não estão de acordo com os ensinamentos de sua crença. Nesse caso, como a liberdade de crença é um direito constitucional, obrigar o jovem a praticar algo contra sua fé seria uma violação de seus direitos fundamentais. Logo, esse cidadão poderá usufruir da escusa de consciência. 

Porém, é necessário que fique claro que isso não significa que o rapaz possa deixar de se alistar. O que vai acontecer nesse caso é que, após o alistamento, ele deverá alegar escusa de consciência para que não precise participar de atividades de caráter militar, colocando-se à disposição das forças armadas para outras ações que não tenham o mesmo viés.

 Esse procedimento está previsto no primeiro parágrafo do art. 143 da Constituição:

  • 1º Às Forças Armadas compete, na forma da lei, atribuir serviço alternativo aos que, em tempo de paz, após alistados, alegarem imperativo de consciência, entendendo-se como tal o decorrente de crença religiosa e de convicção filosófica ou política, para se eximirem de atividades de caráter essencialmente militar.

Para o caso do serviço militar, a lei que regulamenta essa possibilidade de serviço alternativo é a Lei n. 8.239/1991

Além do alistamento obrigatório no serviço militar, a escusa de consciência pode ser usada em outras situações, tendo havido, recentemente, dois importantes avanços em nosso país. Em primeiro lugar, em janeiro de 2019, foi publicada a Lei 13.796 que acrescentou à Lei nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) o art. 7º-A prevendo a possibilidade de alteração das datas de provas e de aulas caso estejam marcadas em “dias de guarda religiosa”.

O exemplo mais comum, nesses casos, é o da Igreja Adventista do Sétimo Dia, para a qual o sábado é “dia de guarda religiosa”, dedicado integralmente a orações. Segundo a lei, para ter direito de se ausentar, o aluno deverá fazer, previamente, um requerimento motivado, explicando as razões pelas quais, com base na sua liberdade de consciência e de crença, ele não poderá comparecer.

O estudante deverá, então, cumprir uma das prestações alternativas: (i) fazer a prova ou assistir à aula de reposição, em uma data alternativa ou (ii) fazer um trabalho escrito ou outra modalidade de atividade de pesquisa, com tema, objetivo e data de entrega definidos pela instituição de ensino, cabendo à instituição de ensino definir qual prestação alternativa deverá ser cumprida pelo aluno.

No mesmo sentido, no RE 611.874, julgado em 26.11.2020, o relator, Min. Edson Fachin, decidiu que é possível a realização de etapas de concurso público em datas e horários distintos dos previstos em edital por candidato que invoca a escusa de consciência por motivo de crença religiosa, desde que presente a razoabilidade da alteração, a preservação da igualdade entre todos os candidatos e que não acarrete ônus desproporcional à administração pública, que deverá decidir de maneira fundamentada.

Outro desenvolvimento recente importante do princípio diz respeito à obrigatoriedade de imunização por meio de vacina, tema que se tornou fundamental após a pandemia da Covid-19. No ARE 1.267.879, discutia-se o caso de pais veganos que não queriam que seus filhos fossem submetidos à vacinação obrigatória, por motivos de razão filosófica.

O recurso foi julgado em 17.12.2020, e o tribunal decidiu pela constitucionalidade da obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, (i) tenha sido incluída no Programa Nacional de Imunizações, ou (ii) tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei ou (iii) seja objeto de determinação da União, Estado, Distrito Federal ou Município, com base em consenso médico-científico. Em tais casos, não se caracterizaria violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, devendo a criança ser vacinada de qualquer maneira.

A decisão foi importante para determinar os limites da escusa de consciência, deixando claro que, assim como os demais princípios enumerados no art. 5º da Constituição de 1988, ele deve ser sopesado com outros direitos fundamentais, como o direto à saúde. 

Como é a prestação de serviço alternativo ao serviço militar obrigatório?

Segundo a lei sobre a prestação de serviço alternativo ao serviço militar obrigatório, a natureza da nova atividade proposta ao alistado deve ser de caráter administrativo, assistencial, filantrópico ou produtivo e deve atender à proporcionalidade e à razoabilidade. Ou seja, para livrar-se de uma obrigação, o indivíduo tem de cumprir outra que seja equivalente em carga horária e produtividade.

A lei também determina que o serviço seja prestado em organizações militares ou em órgãos subordinados aos Ministérios civis, incluindo atividades como treinamentos para atuação em áreas atingidas por desastres, por exemplo.

Para ilustrar a situação, imagine que alguém utilizou a escusa de consciência para evitar o alistamento-padrão. Então, em vez de servir ao exército em um quartel, como acontece geralmente, esse indivíduo poderá atuar, por exemplo, na administração do hospital militar de sua cidade pelo mesmo tempo do serviço militar obrigatório – 12 meses.

Após esse serviço, os jovens recebem o Certificado de Prestação Alternativa ao Serviço Militar Obrigatório, que tem os mesmos efeitos jurídicos do Certificado de Reservista, ficando livre de qualquer sanção.

E se a pessoa utiliza a escusa de consciência e não cumpre o serviço alternativo?

Quando a pessoa recusa-se a cumprir uma obrigação e não aceita a prestação alternativa, ela poderá ser privada dos seus direitos políticos. Há divergências a respeito, já que alguns doutrinadores defendem que a não prestação do serviço alternativo mediante escusa de consciência justifica a perda dos direitos políticos, enquanto outros acreditam que eles deveriam ser apenas suspensos – podendo ser recuperados no futuro.Perder os seus direitos políticos significa não poder votar nem concorrer a cargos eletivos, caso venha a ter interesse. 

QUAL A IMPORTÂNCIA DO DIREITO À ESCUSA DE CONSCIÊNCIA?

O Brasil é um Estado laico. Portanto, há a separação entre Igreja e Estado e a garantia da liberdade de consciência e crença de todos os indivíduos em território nacional. É fundamental termos isso em mente para compreendermos a importância do direito à escusa de consciência.

Nosso país, além de não ter uma religião oficial, assegura em sua Constituição, que todos são livres para professar suas crenças religiosas. Dessa forma, nem o Estado, nem outros indivíduos podem impedir que qualquer pessoa manifeste suas crenças ou realize seus cultos (desde que dentro dos preceitos da lei). 

Tendo como base a liberdade religiosa, o inciso VIII trata dos casos em que há conflito entre deveres legais e a fé do indivíduo. Nesses cenários, a Constituição garante a escusa de consciência como o direito do indivíduo de se recusar a prestar um serviço específico por motivações filosóficas, religiosas ou políticas. Afinal, se o direito à crença é livre no Brasil, a pessoa deve ter o direito de não exercer determinado serviço para resguardar essa liberdade.

Porém, ao solicitar a escusa de consciência, não seria justo com os demais cidadãos que esse indivíduo fosse liberado de uma obrigação comum a todos. Então, para compensar esse desbalanceamento, a pessoa que solicitou a escusa de consciência deverá cumprir uma prestação alternativa, que deverá estar disposta em lei. O cidadão, assim, não será privado de seus direitos por não cumprir uma obrigação, mas deverá cumprir o serviço alternativo.

Para obter a escusa de consciência, como já falamos, não basta apenas a palavra – são obrigatórias as justificativas com embasamento legal para que o órgão entenda que há boa-fé na solicitação de exercício desse direito. 

A ESCUSA DE CONSCIÊNCIA NA HISTÓRIA DO BRASIL

A escusa de consciência nem sempre foi um direito assegurado nas Constituições brasileiras. A primeira a utilizar o termo foi a Constituição de 1891, porém não para assegurar esse direito, mas para proibi-lo! Veja o que ela dizia nos parágrafos 28º e 29º do artigo 72:

  • 28. Por motivo de crença ou de funcção religiosa, nenhum cidadão brazileiro poderá ser privado de seus direitos civis e politicos, nem exhimir-se do cumprimento de qualquer dever civico.
  • 29. Os que allegarem por motivo de crença religiosa com o fim de se isentarem de qualquer onus que as leis da Republica imponham aos cidadãos e os que acceitarem condecoração ou titulos nobiliarchicos estrangeiros perderão todos os direitos politicos.

Já a Constituição de 1934 trouxe a possibilidade de não realizar obrigações legais em virtude das crenças políticas, filosóficas ou religiosas, porém, ela estabelecia a perda dos direitos políticos como contrapartida. Assim, caso o cidadão deixasse de prestar serviço obrigatório, ele não teria mais seus direitos políticos, não podendo mais votar nem ser votado. 

Com a Constituição de 1946, foi inserida a possibilidade de prestação alternativa nos casos de escusa de consciência. Entretanto, na Constituição de 1967 houve nova ênfase na possibilidade de perda de direitos “incompatíveis com a escusa de consciência”. 

Por fim, como vimos ao longo deste texto, a Constituição de 1988 previu a possibilidade da escusa de consciência sem a perda de direitos políticos, caso a pessoa cumpra o serviço alternativo determinado em lei. 

Esse direito fundamental seguiu o foco dos movimentos sociais crescentes após o período da ditadura militar que buscava uma legislação que englobasse mais pautas sociais, garantias de direitos e um sistema político democrático. 

Escusa de consciência – um direito garantido?

Apesar de a Constituição deixar clara a possibilidade de escusa de consciência, mesmo no serviço militar – que é o caso mais comum de utilização desse direito –, ainda existem muitas dificuldades na prática.

Jovens que se alistam e declaram imperativo de consciência, na maioria das vezes, acabam saindo sem qualquer documentação, sendo, portanto, privados dos seus direitos políticos. Segundo o Nexo Jornal, isso acontece porque os oficiais responsáveis pelo alistamento não conhecem essa prerrogativa legal e encaram a atitude como uma recusa ao alistamento. 

Essa falha já deixou, entre 1998 e 2015, 345 jovens com processos dessa natureza pendentes no Ministério da Justiça, ficando privados de seus direitos políticos durante todo esse período. Isso gera uma série de empecilhos ao cidadão, já que o Certificado de Reservista é fundamental para diversos tipos de inscrição, como matrículas em instituições acadêmicas e alguns empregos, por exemplo.

Ainda segundo o Nexo Jornal, mesmo a lei do serviço alternativo tendo quase 30 anos, suas especificações não são claras, o que causa ruídos quanto à nova função que será desempenhada. O exército afirma que, apesar de regulamentado, o serviço alternativo ainda não foi implementado pelas forças armadas.

Logo, tanto especialistas quanto o próprio exército entendem que, mesmo garantida na teoria, a prática da escusa de consciência é ineficiente no Brasil. Para que ela tenha uma atuação real, é necessário que o governo atue na formulação das propostas de serviços alternativos e na conscientização dos oficiais de recrutamento sobre a existência da norma e como proceder nessas situações.

CONCLUSÃO

A escusa de consciência é um direito de todos os cidadãos brasileiros e deve ser entendida também a partir da liberdade religiosa determinada na Constituição. Entretanto, ainda existem dificuldades para se implementar o que está escrito no inciso VIII do artigo 5º.

A escusa de consciência, apesar de permear nossas constituições passadas, só foi instaurada de forma abrangente em nossa Constituição atual. Entretanto, é fundamental que o Estado brasileiro regule as propostas de serviços alternativos e dissemine, entre as forças armadas, sua prática e seus procedimentos.

Ademais, é fundamental que o STF continue a delimitar em julgados paradigmáticos a extensão e aplicabilidade de tal princípio no ordenamento jurídico brasileiro, de modo a dar os contornos a esta que é uma das proposições basilares de qualquer estado laico: a escusa de consciência.

  • Esse conteúdo foi publicado originalmente em julho/2019 e atualizado em agosto/2023 com objetivo de democratizar o conhecimento jurídico sobre o tema de forma simples para toda população. Para acessar maiores detalhes técnicos sobre o assunto, acesse o Livro do Projeto Artigo Quinto.

Autores:
  • Felipe Kachan
  • Mariana Mativi
  • Talita de Carvalho

Fontes:

  1. Nexo – Quais os obstáculos à objeção de consciência no alistamento militar
  2. Jus – Objeção de consciência: pode o indivíduo escusar-se de lutar uma guerra que considere injusta?
  3. Jurisway – A escusa de consciência como hipótese obstativa ao exercício dos direitos políticos
  4. Jusbrasil – O que é escusa de consciência? 

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