Artigo Quinto

PUBLICADO EM:
março 10, 2020

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Inciso XL – Conflito de leis penais no tempo

"A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu"

CONFLITO DE LEIS PENAIS NO TEMPO: A CONTRADIÇÃO DA LEGISLAÇÃO

Você sabia que a Constituição Federal prevê a possibilidade de existir mais de uma lei que trate sobre o mesmo fato com entendimentos distintos? O Inciso XL, do artigo 5º, trata exatamente sobre esse assunto: o conflito das leis penais no tempo. Seu propósito é orientar a ação do aplicador da lei se e quando isso ocorrer. Além disso, ele também garante ao réu penas mais leves quando duas leis ditarem penas diferentes para a mesma infração.  

Quer saber como a Constituição define esse conceito e por que ele é tão importante, bem como a história dessa garantia e como ela é aplicada na prática? Continue conosco! A Politize!, em parceria com  a Civicus e o Instituto Mattos Filho, irá descomplicar mais um direito fundamental no projeto “Artigo Quinto”. 

Para conhecer outros direitos fundamentais, confira a página do projeto, uma iniciativa que visa tornar o direito acessível aos cidadãos brasileiros, por meio de textos com uma linguagem clara.

O QUE É O INCISO XL?

O Inciso XL do artigo 5º, promulgado pela Constituição Federal de 1988, define que:

Art 5º, XL, CF – a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;

Este inciso trata do conflito de leis penais no tempo, ou seja, quando existe mais de uma lei regulando o mesmo fato, mas editadas em momentos diferentes. Como a sociedade está sempre mudando, é comum que novas leis sejam editadas, podendo entrar em conflito com as antigas.

Na prática, os conflitos nada mais são que duas leis que têm determinações diferentes aplicáveis à mesma situação, sendo de responsabilidade do intérprete e aplicador da lei decidir qual das normas deve ser utilizada. 

O fenômeno jurídico que leva uma norma a se “esvaziar” e perder o seu efeito é chamado de revogação. Para compreender melhor o inciso XL, é importante entender o princípio do tempus regit actum. Ele dita que, em geral, a lei se aplica aos fatos praticados durante sua vigência.

A princípio, a lei não pode alcançar fatos ocorridos antes de seu início, nem ser aplicada àqueles ocorridos após sua revogação (extinção).

São hipóteses de conflito de leis no tempo:

  • Abolitio criminis: quando uma nova lei deixa de considerar crime algo que antes era criminalizado. Podemos citar como exemplo o adultério, que embora já não desse causa a sentenças penais há muitos anos, foi expressamente revogado do Código Penal brasileiro apenas em 2005. 
  • Novatio legis incriminadora: quando uma nova lei cria um tipo penal que, até então, não existia no ordenamento jurídico. Trata-se de uma conduta que passa a ser considerada crime a partir da publicação de uma lei.
  • Novatio legis in pejus: quando já existia um tipo penal que definia determinada conduta como ilícita, mas a lei nova é mais severa que a anterior. 
  • Novatio legis in mellius: semelhante ao anterior, mas nesse caso a nova lei tem sanções mais brandas. Na hipótese de conflito, a lei mais benéfica ao agente sempre prevalecerá, seja ela a anterior ou a nova.

Podemos dividir o inciso XL da Constituição Federal em duas partes. Na primeira, está a regra principal: a lei penal não será aplicada para fatos anteriores à sua vigência. Na segunda parte, o constituinte trata da exceção à regra: quando beneficiar o réu, as leis cuja vigência inicia após a data dos fatos poderão ser aplicadas. Dessa maneira, a lei nova prevalecerá, quando for favorável ao réu, mesmo se a infração tiver sido cometida antes de sua existência.

No meio jurídico, o inciso XL do artigo 5º aborda o princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa ou retroatividade da lei penal mais benéfica. A retroatividade da lei é a capacidade de uma lei nova de produzir efeitos nos fatos ocorridos no passado. Já a retroatividade da lei penal benéfica é uma exceção que ocorre para beneficiar o agente que está sendo ou já foi julgado, mesmo que ele esteja cumprindo algum tipo de pena. 

Cabe pontuar alguns direitos fundamentais que estão relacionados ao inciso XL:

  • Igualdade: a irretroatividade da lei mais gravosa e a retroatividade da lei mais benéfica garantem que nenhum cidadão responderá pelos seus atos com maior rigor que os demais. A lei é impessoal e abstrata. Assim, não é racional continuar a punir alguém por uma conduta que outro indivíduo poderá praticar sem punição ou com punição mais leve;
  • Segurança: não é racional responsabilizar alguém por uma conduta cujas consequências negativas ele não poderia conhecer quando a praticou. Neste caso, o inciso analisado tem relação direta com o princípio da legalidade, pois a lei é entendida como um limitador do poder do Estado e uma garantia à liberdade do cidadão.

HISTÓRICO DESTE DIREITO

Ao menos desde o século XVIII entende-se não haver crime sem lei que o defina (princípio da legalidade penal). Na transição do Estado absolutista para o Estado Democrático de Direito, as obras iluministas  — publicadas por autores como John Locke (1632-1704), Jean-Jacques Rousseau (1712-1178), Montesquieu (1689-1755) e Cesare Beccaria (1738-1794) — propuseram impor limites ao poder do Estado a partir do princípio da legalidade. 

Foi, então, a partir do Iluminismo que o juiz passou a ser visto como o aplicador da lei, já que se tinha como premissa a clareza da lei e que somente por ela poderia se garantir a igualdade. Nesse sentido, o princípio da legalidade e o princípio da irretroatividade da lei penal estão diretamente relacionados, já que ambos asseguram que o poder do Estado não é absoluto e entendem que a lei é capaz de limitar esse poder. 

A retroatividade da lei foi tratada inicialmente no Primeiro Congresso Continental (1774) e na Constituição dos Estados Unidos (1787). Seu entendimento acabou por influenciar a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), tornando-se um dogma da democracia e se reproduzindo nos códigos penais posteriores.

No Brasil, desde o Império, à exceção do período ditatorial do Estado Novo, sempre houve preocupação, por parte do legislador constituinte, de garantir expressamente a irretroatividade das normas penais. Na Constituição de 1824, a irretroatividade da lei foi abordada no artigo 179, que determinava, em seu inciso XI: “Ninguém será sentenciado, senão pela Autoridade competente, por virtude de Lei anterior, e na forma por ela prescrita”.

A partir da Constituição de 1934, as previsões normativas deixaram de impedir a simples retração da lei e passaram a tratar do tema a partir da admissão da retroatividade da lei penal mais benéfica (art. 113, item 27). 

QUAL É A RELEVÂNCIA DO INCISO XL?

Nos Estados de Direito, a existência das leis gera estabilidade social ao permitir que as pessoas regulem suas condutas com base em regras claras, previsíveis e preestabelecidas. Chamamos isso de segurança jurídica, cuja manutenção depende do princípio da irretroatividade.  

Conforme já destacado, a irretroatividade da lei tem uma exceção: quando a lei mais nova beneficiar o indivíduo. Essa exceção advém, entre outros, do princípio da isonomia e da intervenção mínima, responsável por assegurar que a lei penal só seja utilizada como último recurso da intervenção do Estado na liberdade dos cidadãos. 

Assim, se alguém foi condenado por um ilícito que passou a ter uma pena menos severa ou deixou de ser crime, essa pessoa será beneficiada pela nova legislação, pois não é justo que continue a ser punida de forma desproporcional a alguém que venha a praticar a mesma conduta. 

Pelo princípio da irretroatividade penal da lei mais gravosa, o contrário ocorre quando há fixação de uma pena mais rigorosa pela prática de um crime. Aqueles indivíduos que tenham praticado a conduta criminosa antes do agravamento da sanção estatal não serão alcançados por esse rigor adicional. 

Do mesmo modo, fatos ocorridos antes que uma conduta fosse considerada crime não podem ser objeto de punição estatal. Nesses casos, preserva-se a segurança nas relações entre indivíduo e Estado, impedindo que o segundo possa surpreender o primeiro com consequências para suas ações que inexistiam e, portanto, não poderiam ter sido consideradas antes da prática de uma conduta. 

Por se tratar de um tema contemplado desde a primeira Constituição brasileira, a irretroatividade da lei penal mais gravosa é objeto de poucas discussões e questionamentos. Os debates que envolvem o tema, na maioria das vezes, são pautados pelas formas de implementar o referido princípio, assim como a exceção de retroatividade da lei mais benéfica. 

O INCISO XL NA PRÁTICA

Na prática,  esse direito fundamental também é assegurado por outras leis, como:

  • Código Penal: no artigo 2º, determina que, quando uma lei deixar de considerar determinada conduta como criminosa, também devem ser cessados os efeitos dessa lei, abrangendo, inclusive, os casos já julgados; no artigo 107, inciso III, determina a extinção da pena quando um fato deixar de ser crime em razão da retroatividade da lei penal mais benéfica.
  • Convenção Americana sobre Direitos Humanos (também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica): o artigo 9º dispõe que ninguém pode ser condenado por ações ou omissões que, quando cometidas, não são consideradas como crime. Tampouco se pode impor pena mais grave que a aplicável no momento do delito. Se depois da perpetração do delito a lei dispuser a imposição de pena mais leve, o sujeito julgado se beneficiará da lei que lhe for mais benéfica.

CONCLUSÃO

Como vimos, o inciso XL do artigo 5º dispõe sobre o princípio da irretroatividade da lei penal e permite que a lei tenha retroatividade nos casos em que o réu seja beneficiado. Trata-se, portanto, de um princípio de extrema importância para o Estado Democrático de Direito no qual vivemos, que prevê ao mesmo tempo uma regra e sua exceção. 

  • Esse conteúdo foi publicado originalmente em março/2020 e atualizado em setembro/2023 com objetivo de democratizar o conhecimento jurídico sobre o tema de forma simples para toda população. Para acessar maiores detalhes técnicos sobre o assunto, acesse o Livro do Projeto Artigo Quinto.

Autores:
  1. Gabrielle Graziano
  2. Mariana Mativi
  3. Matheus Silveira
Fontes:
  1. Instituto Mattos Filho de Advocacia;
  2. Artigo 5° da Constituição Federal – Senado;

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