Artigo Quinto

PUBLICADO EM:
maio 19, 2020

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Inciso L – Direito de lactantes presas à amamentação

"Às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação"

INCISO L – DIREITO DE AMAMENTAÇÃO EM PRESÍDIOS

Você sabia que a Constituição garante às mães presidiárias o direito de amamentação em presídios? Não? Esse é um direito previsto no inciso L do artigo 5º e se fundamenta no princípio de que a família é a base da sociedade, tendo, dessa forma, proteção do Estado. Sendo assim, por meio do direito à convivência familiar, o inciso L garante à mulher o direito de amamentar seus filhos, mesmo quando está cumprindo pena privativa de liberdade.

Quer saber mais sobre como a Constituição define este direito e por que ele é tão importante, bem como a história dessa garantia e como ela é aplicada na prática? Continue conosco! A Politize!, em parceria com a Civicus e o Instituto Mattos Filho, irá descomplicar mais um direito fundamental nessa série do projeto “Artigo Quinto”.

Para conhecer outros direitos fundamentais, confira a página do projeto, uma iniciativa que visa a tornar o direito acessível aos cidadãos brasileiros, por meio de textos com uma linguagem clara.

O QUE É O INCISO L?

O inciso L do artigo 5º, previsto na Constituição Federal de 1988, define que:

às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação

A Constituição garante às mães presidiárias o direito de permanecer com seus filhos no estabelecimento prisional ou de aguardar julgamento em prisão domiciliar durante a amamentação

Esse direito é garantido no inciso L do artigo 5º e deriva de diversos outros princípios e valores, como a dignidade da pessoa humana, a pessoalidade da pena, a proteção integral à criança e à proteção estatal da família. Ele também decorre do direito da criança à formação do vínculo materno e à nutrição adequada provida pelo leite materno. 

Portanto, o Estado deve oferecer condições materiais mínimas para que as mulheres presas possam conviver com seus filhos e amamentá-los. Dessa forma, o objetivo principal deste inciso é a preservação do direito ao aleitamento materno. O leite materno é considerado indispensável para o desenvolvimento biológico e psicológico de toda criança.

Um ponto importante a destacar é que a Constituição adota a família como base da sociedade e confere a ela proteção por parte do Estado. Um dos instrumentos utilizados para essa proteção é a garantia do direito à convivência familiar. 

Isso quer dizer que toda pessoa tem direito a ser criada e educada no seio de sua família, e dentro desse direito também está o de amamentação, mesmo que a pessoa lactante esteja privada de sua liberdade. Entender o contrário significaria ainda estender para a criança a sanção aplicada para a mãe, o que é incompatível com a pessoalidade e a individualização da pena.   

HISTÓRICO DESSE DIREITO

 

Em 1955, a Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou as Regras Mínimas para Tratamento de Presos. Elas preveem que as ações e os serviços dispensados aos indivíduos encarcerados devem ter como finalidade a promoção do seu desenvolvimento, do respeito próprio e do sentido de responsabilidade. 

A Regra n. 23 estabelece que devem existir instalações específicas para o tratamento de gestantes, bem como de parturientes (pessoas em trabalho de parto ou que deram à luz a seus filhos recentemente). Contudo, o Brasil adotou as referidas regras somente em 1994, por meio da Resolução n. 14/1994 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP).

Uma década antes, a Lei n. 7.210/1984 (Lei de Execução Penal – LEP) determinou  que os estabelecimentos penais tivessem berçários, a fim de que essas mulheres pudessem amamentar seus filhos dignamente. Com uma alteração legislativa ocorrida em 2009, a LEP passou a prever que o direito de amamentação em estabelecimentos prisionais deve ser garantido, no mínimo, até os 6 meses de idade.

Em 2010, o Conselho Econômico e Social da ONU recomendou, por meio da Resolução n. 16, a adoção de regras para o tratamento de mulheres presas e de medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras.

 O documento, conhecido como “Regras de Bangkok”, traz diversas disposições sobre os direitos da mulher presa e de seus filhos. Destaca-se a regra n. 48, segundo a qual  mulheres presas não devem ser desestimuladas a amamentar seus filhos e, ainda, devem ser orientadas sobre dieta e saúde enquanto estiverem gestantes e/ou lactantes.

Além disso, a Portaria Interministerial n. 210/2014, do Ministério da Justiça e da Secretaria de Políticas para as Mulheres, instituiu a Política Nacional de Atenção às Mulheres em Situação de Privação de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional (PNAMPE). 

Seu propósito é evitar a violação dos direitos das mulheres encarceradas, tendo entre suas metas o respeito ao período mínimo de amamentação e de convivência da mulher com seu filho.

Na prática, a superlotação do sistema carcerário brasileiro gera um cenário completamente diferente. Observa-se diversas negligências, como tratamento pré-natal inadequado ou inexistente, infraestrutura precária e falta de profissionais qualificados. Pior ainda, verifica-se o desrespeito ao prazo mínimo de seis meses de convívio e aleitamento materno, cuja consequência é a separação abrupta entre o bebê e sua mãe.  

Com frequência, isso culmina na ruptura permanente da relação entre mães e filhos. Por vezes, as crianças são enviadas para instituições de acolhimento e cuidado quando as famílias das genitoras não têm disponibilidade para cuidar das crianças no período pós-convivência.

Em maio de 2015, foi solicitado ao Supremo Tribunal Federal (STF), por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 347, o reconhecimento e a tomada de providências perante as violações massivas de direitos humanos, características do falho e superlotado sistema carcerário brasileiro. 

Em agosto daquele ano, a Corte reconheceu “a inequívoca falência do sistema prisional brasileiro”, responsável por “violações sistemáticas de direitos humanos”, e determinou que juízes em todo o país estabelecessem, sempre quando possível, penas alternativas à prisão.

Em março de 2016, entrou em vigor a Lei n. 13.257, conhecida como Marco da Primeira Infância, que alterou diversas leis com o intuito de implementar políticas públicas para crianças de zero a sete anos. 

Assim, o Código de Processo Penal (CPP) passou a dispor expressamente, no artigo 318, sobre a possibilidade de decretação da prisão domiciliar em substituição à prisão preventiva para gestantes e mães de crianças de até 12 anos de idade. A alteração legislativa, contudo, não eliminou os problemas reconhecidos na ADPF n. 347.

Diante disso, em fevereiro de 2018, o STF proferiu decisão, no âmbito do Habeas Corpus (HC) n. 143.641/SP, determinando que mulheres grávidas, mulheres no pós-parto, mães de crianças de até 12 anos incompletos e mães de pessoas com deficiência acusadas de crimes não violentos aguardem julgamento em prisão domiciliar.

 O HC coletivo foi impetrado pelo Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (Cadhu), em parceria com diversas instituições, em favor de todas as mães presas no país. Foi uma  resposta ao descumprimento reiterado de direitos fundamentais dessas mulheres e seus filhos, mesmo após o  novo artigo 318 do CPP.

A Corte, por meio dessa decisão, relembrou a profundidade do dano causado às mulheres e às crianças forçadas a permanecer enclausuradas sob as condições deploráveis do sistema prisional brasileiro. Reiterou, assim, a importância de um ambiente seguro para garantir o êxito da amamentação e demais cuidados com a saúde das mães e das crianças. 

Quanto às mães em cumprimento definitivo da pena, a LEP (artigo 82, § 2º) estabelece  a obrigatoriedade da manutenção de berçários nas prisões, de modo a permitir a amamentação adequada até pelo menos 6 meses de idade. Além disso, também exige a manutenção de creches para cuidar de crianças entre 6 meses e 7 anos cujas mães estejam presas. 

No mesmo sentido, a Lei n. 13.769/2018 inovou ao alterar o artigo 112 da LEP para estabelecer critérios diferenciados para progressão de regime de cumprimento de pena para as presas gestantes, mães ou responsáveis por crianças ou pessoas com deficiência. Além disso, para aquelas em regime aberto, o artigo 117 da LEP prevê o direito ao recolhimento em residência particular.

Mulher amamentando seu filho | Direito de amamentar das presidiárias - Artigo Quinto
“Como visto acima, o presente inciso determina que o Estado deve fornecer condições materiais mínimas para que as mulheres que estão presas possam conviver com seus filhos e amamentá-los durante o período de amamentação.” | Direito de amamentar das presidiárias – Artigo Quinto

A IMPORTÂNCIA DO INCISO L

O aleitamento materno é reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como o método de alimentação adequado ao bebê ao menos durante os seus primeiros seis meses de vida. O relacionamento afetivo entre mãe e filho influencia diretamente o desenvolvimento do psiquismo e a formação da personalidade da criança, devendo ser preservado. O carinho, o afago e o contato físico com a mãe podem prevenir até mesmo doenças. Portanto, a relação mãe e filho é considerada indissociável.

Assim, inicialmente, percebeu-se que a permanência das crianças nas penitenciárias não só era fundamental para a relação mãe-filho, mas também atendia ao princípio do melhor interesse da criança. Embora o local não seja o mais adequado, a importância da mãe nos primeiros anos de vida dos filhos se sobressai às demais circunstâncias.

Com o passar dos anos, a experiência mostrou que o mais adequado é assegurar que o menor número possível de mães e crianças seja submetido às condições terríveis das prisões brasileiras. Dessa forma, tornou-se possível que essas mulheres aguardem julgamento em prisão domiciliar.

A garantia desse direito está atrelada também à doutrina da proteção integral que rege os dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), garantindo os princípios da prioridade absoluta e o do melhor interesse da criança

O primeiro estabelece primazia em favor de crianças e adolescentes em todas as esferas de interesse nos campos social, familiar, administrativo, judicial e extrajudicial. O segundo princípio norteia a elaboração e a aplicação das leis, estabelecendo como critério de interpretação legal e solução de conflitos as necessidades e o bem-estar da criança e do adolescente.

Além disso, de acordo com a doutrina da proteção integral, a responsabilidade pelas crianças e pelos adolescentes está dividida solidariamente entre família, sociedade e Estado, que é chamada de tríplice responsabilidade.

Quem está no período gestacional e de amamentação encontra-se em uma situação singular e deve receber condições especiais de tratamento, como estabelecem normas nacionais e internacionais. Essa atenção diferenciada deve ser observada em quaisquer espaços – públicos ou privados –, especialmente em estabelecimentos de total confinamento sob custódia direta do Estado, como os prisionais.

É importante destacar que a relação entre mãe e filho é uma troca recíproca, que promove o desenvolvimento sadio e adequado das crianças e, também, contribui para o processo de ressocialização dessas mães.

Outros benefícios que a amamentação traz para a saúde da mulher são: perda mais rápida do peso adquirido na gestação, prevenção de episódios hemorrágicos no pós-parto e diminuição da incidência de câncer de mama. A garantia prevista no inciso L do artigo 5º da Constituição é ainda mais necessária quando analisados os dados sobre mulheres e mães encarceradas no Brasil. De acordo com o Departamento Penitenciário Nacional (Depen): 

Além disso, segundo levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), divulgado em outubro de 2018, cerca de 466 mulheres privadas de liberdade estavam grávidas ou amamentando. Segundo a Informação n. 63/2020 do Depen, em março de 2020, o número de presas gestantes caiu para 208 nos presídios brasileiros, sendo que 77 eram presas provisórias.

Diante das dificuldades que ainda são enfrentadas no ambiente prisional, muitas reeducandas entregam seus filhos aos cuidados de parentes ou instituições para que a criança não sofra com a falta de assistência que elas sofrem. Isso resulta no desmame precoce e, consequentemente, no déficit de desenvolvimento físico e intelectual da criança.

Além disso, as principais causas da dificuldade em amamentar são a ansiedade e a desconfiança de que o leite materno, por si só, não seja o suficiente para o filho. Vale lembrar que a ação dos hormônios envolvidos na amamentação – prolactina e ocitocina, responsáveis pela produção e pela ejeção do leite, respectivamente – está interrelacionada com o estado emocional da mãe, podendo a produção de leite diminuir em decorrência de estresse físico ou psíquico, como ansiedade, tensão, dor, dúvida, medo, insegurança e cansaço.

O INCISO L NA PRÁTICA

O direito de amamentação em estabelecimentos prisionais – bem como a conversão da prisão preventiva em domiciliar durante a gestação, no período imediatamente posterior a ela ou para mães de crianças com menos de 12 anos – é assegurado na prática por diversos normativos em diferentes esferas. 

A despeito do disposto na legislação, o fato é que a maioria das estruturas carcerárias femininas são improvisadas. Muitas das unidades carcerárias foram construídas para receber homens e só posteriormente foram convertidas em unidades prisionais femininas. Por isso, não são dotadas de espaço apropriado para a amamentação, berçário ou creche. De acordo com o Depen, apenas 0,66% dos estabelecimentos prisionais têm creches e 3,2% têm berçário.  

Nas unidades prisionais específicas para receber mães e seus bebês, as vagas não são suficientes para atender a demanda existente. Mais que isso, a negligência com a qual o Estado brasileiro trata as pessoas encarceradas impõe, à maioria das mães presas, que permaneça com seus filhos nos estabelecimentos prisionais apenas pelo período mínimo, que é de 6 meses.

Amamentação | Direito de amamentar das presidiárias - Artigo Quinto
“O carinho, afago e contato físico com a mãe previnem até mesmo doenças. Portanto, a relação mãe e filho é considerada indissociável.” | Direito de amamentar das presidiárias – Artigo Quinto

CONCLUSÃO

Embora existam diversas previsões legais a respeito do direito de amamentação em presídios, nota-se que os direitos das mulheres presas são constantemente violados e negligenciados pela ausência de interesse político, consequentemente, de políticas públicas voltadas para a população feminina carcerária.

  • Esse conteúdo foi publicado originalmente em maio/2020 e atualizado em setembro/2023 com objetivo de democratizar o conhecimento jurídico sobre o tema de forma simples para toda população. Para acessar maiores detalhes técnicos sobre o assunto, acesse o Livro do Projeto Artigo Quinto.

Sobre os autores:

Gabriela Trovões Cabral

Advogada

Matheus Silveira

Membro da equipe de Conteúdo do Politize!.

Eduardo de Rê

Membro da equipe de Conteúdo do Politize!.


Fontes:

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