Black Mirror é uma série de televisão britânica de ficção científica de um futuro próximo fazendo alegorias de tecnologias que já vemos presentes em nossos dias atuais, mas ainda não na escala e proporções apresentadas na série. Dito de outra forma, o que se discute ali é o uso social dessas tecnologias.
A série é exibida na plataforma Netflix e se destaca por episódios independentes entre si, mas unidos em seu propósito global de discutir nossa sociedade em mudança em função da tecnologia. Se fosse um livro seria um livro de contos ao invés de um romance.
Aqui, no Politize!, nós já escrevemos dois textos analisando a relação de episódios de Black Mirror e a política. Você pode conferi-los abaixo:
1. Política e Black Mirror #1: Quinze milhões de que? De Méritos!
2. Política e Black Mirror #2: O ursinho da inocência
E aí, preparado (a) para mais uma análise? Então segue com a gente!
O episódio MetalHead
No aplicativo Netflix lemos: Quarta Temporada, Quinto Episódio. “A procura de suprimentos em uma terra devastada, eles encontram um inimigo implacável. Agora, fugir é a única saída”.
Esta sinopse bem poderia indicar uma obra de ação, com muito tiroteio e muitas explosões, e de certa forma o episódio é sim uma obra do gênero ação. Como uma obra como essa poderia falar de política?
O episódio pode ser entendido como uma discussão ética e regulatória da inteligência artificial (IA). O próprio diretor e roteirista David Slade comentou que sua inspiração foram os robôs de Boston Dynamics: “Aqueles malditos robôs do grupo Boston Dynamics são assustadores! São robôs militares! Possuem inteligência artificial. Podem resolver problemas. São completamente autônomos. Isso é assustador.” [1]
Outra hipótese a ser explorada é a da tomada de poder pela classe robótica e a ameaça da extinção da raça humana à lá Isaac Asimov, o autor que primeiro escreveu sobre esse assunto e gerou uma legião de obras influenciadas por suas 3 leis da robótica. Contra essa ameaça, nossos personagens, os poucos sobreviventes do mundo, se arriscariam para manterem-se humanos no final dos tempos. Assim, o objeto desejado torna-se uma uma metáfora para os laços familiares e de vizinhança. Ou seja, a sobrevivência da ética comunitária no futuro pós apocalíptico racionalista.
Diversos episódios de Black Mirror se referem a assuntos Políticos, e gosto de pensar que este episódio não seria apenas um thriller de ação no meio da série, mas sim que se conecta aos demais, numa coletânea de contos. Faço aqui uma sugestão de leitura do episódio centrada no direito à propriedade.
Neste episódio, como em outros comentados nessa série de reflexões políticas, o autor nos oferece uma versão de futuro. Uma versão possível através de um novo nível tecnológico que inexiste hoje plenamente, mas é perfeitamente possível de ser imaginado.
O que essa sociedade futurista fez da tecnologia robótica disponível no episódio? Fez (literalmente) seguranças. Os cães servem a uma organização privada. Uma empresa, no caso.
Armados, indestrutíveis, infalíveis, incansáveis, extremamente eficientes, e que só se contentam com o criminoso morto. Em 41 minutos concretizaram o sonho atual de setores das sociedades que cansaram do sistema judiciário e pedem decapitações em praça pública entoando o mantra: “Tá com dó? Leva o ladrão pra morar com você!”.
Parte da provocação do episódio consiste em imaginar: se existe a tecnologia para construir estes soldados implacáveis, como seria a guerra nesse futuro? Ou como seria uma ação de reintegração de posse contra uma organização como o MST? Aliás, seria o caso da força pública de segurança ser formada por estes robôs? Por que não? [2]
O futuro do passado
O episódio se inicia com a câmera se movimentando lateralmente mostrando uma região inóspita, sem ocupação humana, e as imagens são em branco e preto. Constrói-se uma sensação de instabilidade e tensão e permite situarmo-nos no ambiente da história.
Três colegas viajam num carro – uma mulher, Bella, nossa personagem principal, e dois homens- e já o primeiro diálogo faz menção a uma situação extrema: a fome. As balas intragáveis são a única coisa que sobrou.
Um carro queimado no caminho, olhares apreensivos, tendas abandonadas revelam um cenário de combate por onde passam, ao passo que um dos homens reclama que é indigno ser um porco, e que porcos moravam nessas tendas, mas agora os cachorros já deram conta de todos eles.
Foram mortos, como compreenderemos mais adiante quando descobrirmos quem são os cães. Segundo o comentarista, a vida dos porcos é indigna porque vivem com o nariz na altura dos glúteos dos outros. “Que tipo de sociedade é essa?” Pergunta com indignação. Ao que é respondido pela nossa personagem principal com outra pergunta: “Uma sociedade de iguais?”
Terra devastada sugere imageticamente pobreza e ausência de lei, Estado, ordem. Fugir é a única saída quando não se pode vencer pela força e não existe justiça. Ou pelo menos o sistema judicial não alcançaria este local.
Todas estas características se justapõem na nossa imaginação de um lugar subdesenvolvido e de civilização frágil. Este futuro que o episódio retrata é também um presente específico.
Fome e desigualdade de renda são os assuntos dos dois primeiros diálogos do episódio. Conflitos de valores políticos ficam visíveis quando se discute a dignidade da “sociedade de porcos”.
Chegam ao seu destino. Ao lado de um trilho de trem existe um enorme galpão. O plano é roubá-lo. Não sabemos o porquê exatamente, mas ficamos sabendo que será um furto inútil na visão de um dos personagens: “Ele está morrendo mesmo… não é como se fossemos conseguir salvá-lo!”. Então, entendemos que o furto é passional. Não é motivado por interesses econômicos, mas sim sentimentais.
Nossa personagem principal retruca e consegue reorganizar o grupo em torno de seu objetivo. “Se conseguirmos amenizar seus últimos dias, para mim basta. Prometi à minha irmã que o ajudaria. Todos nós prometemos. E além disso, haverá coisas de valor para roubar também”.
Reafirmado o pacto original de ajudar uma criança doente, cada qual com suas motivações novamente afiadas, uns com compaixão e outros com interesse nas baterias, eles partem para a execução do furto.
Aqui fecha-se o ato primeiro do episódio: Entendemos o que será feito, e por quê. Nossos personagens sabem da dificuldade do que vão fazer e da loucura que isso representa. Um deles deixa claro que se algo der errado é para os outros simplesmente fugirem ao invés de oferecer ajuda. Assim constrói-se a noção do poder inconteste que é obstáculo ao furto.
Segundo ato
O furto dá errado, e o resto do episódio é uma perseguição implacável. Um cachorro-guarda mecânico nota a presença dos ladrões. Rapidamente dá cabo de um, e começa a perseguição aos demais.
O cachorro é implacável! Lê o movimento ao seu redor com câmeras de calor e ondas sonoras, ejeta fragmentos com geolocalizadores, rastreia sinal de rádio, sacrifica a própria pata para não ficar preso a escombros, enxerga marcas de sangue, dirige carros, abre portas, escalaria árvores não fosse que tivesse perdido uma pata. Sobrevive a tiro de espingarda a queima roupa (compare-se com as marcas dos borrões de sangue na cena do suicídio do casal – o tiro foi da mesma distância), e mesmo quando morre, aciona a matilha para não ter fim a perseguição.
Ao fugir pela paisagem inóspita, Bella, a única sobrevivente dos três, encontra uma mansão e consegue entrar nela na esperança de escapar do cachorro. Vã esperança: o cachorro tinha a chave! É o que precisamos para entender que esta mansão é a do dono dos cachorros e do galpão.
No pouco tempo em que conseguiu descansar Bella consegue preparar uma armadilha para o cão. Retirou à faca seu geolocalizador subcutâneo e preparou uma distração (a cena da música no carro). Perdido, o cão busca de onde vem o som e é surpreendido com um tiro de espingarda de Bella.
Mas eis que o cão, em seu último truque, dispara mais geolocalizadores, muitos mais, que entram na pele de Bella. E ela volta à casa para tentar retirá-los novamente: ela sabe que outros cães estão a caminho.
Grande parte do episódio se passa entre olhares de tensão da personagem principal Bella e sprints pela sua sobrevivência. Mas eis que diante do espelho novamente ela percebe um dos geolocalizadores em seu pescoço. Não poderia tirar esse com a faca. É, afinal, impossível correr. E então decide tirar sua vida.
Ao final desta cena clímax, a câmera nos revela, generosamente, a última peça deste quebra-cabeça: furtar o quê, afinal, justificava tanto risco.
Um ursinho. De pelúcia. Para crianças. Brinquedo. Não tecnológico. Fofinho. Usado, pois não tinham embalagem, e que hoje em dia não valeria mais que uns trocados amassados.
O personagem que não entende a sociedade de porcos tinha razão: ursinho não faria salvar a criança doente. O que ele falhou em perceber foi que este nem de longe era o motivo do furto. Baterias foram o que foi necessário para convencê-lo a ir adiante.
O assunto do episódio, assim, é sobre o significado do furto para aquele grupo de personagens. Mais que isso são apenas conjecturas. Se assim é, o assunto é também política.
E este significado é humano. O furto é ambiguamente nobre.
“Se chegássemos ao ponto onde tivéssemos robôs militares como seguranças de produtos e matando pessoas, a mim pareceria que teríamos chegado a uma enorme falta de humanidade. O tema (do episódio), se é que existe um, é que é muito importante se apegar à humanidade. Sinto que a coisa mais importante (do episódio) é que o espectador sinta isso.” [3]
O anti-herói intelectual
Este episódio é vago e dosa muito bem as informações que irá revelar, nunca muito nem muito pouco. E nisto constrói bem a sensação de viver debaixo de um poder arbitrário e indestrutível. Contra este cenário, nos apresenta uma tentativa de furto ingênuo.
Muitas dúvidas pairam no ar: quem é essa família da Bella? O que aconteceu com essa criança? Porque o dono da mansão se suicidou com um tiro de espingarda? Como é essa sociedade em que estão inseridos os personagens? Seu aparato legal, seu policiamento, seu sistema de Justiça?
Sem muitas informações somos obrigados a fugir antes de pensar. O cachorro está vindo! Esta construção cinematográfica tem o poder de ampliar a sensação do espectador de estar perdido e tenso. Especialmente tem o poder de ampliar a sensação de ser inabalável e arbitrário este poder privado. “A única saída é fugir” lembram-se?
Este é outro episódio de Black Mirror que questiona o uso de um poder. Quando se dispuser da tecnologia para evitar qualquer furto, ou punir qualquer furto, ou montar um guarda incansável e indestrutível, se estará diante de uma decisão POLÍTICA, e não técnica. Portanto uma decisão comunitária e social, e não uma decisão privada e econômica.
A mesma constatação pode vir da compreensão do risco que representa a imensidão de dados privados à disposição na internet. Ou da malha de câmeras públicas em Beijing.
Imagino que este futuro não é apenas um futuro, mas também um presente, quando se houver uma situação em que um poder inconteste e arbitrário seja operado por uma força sem diálogo. Quem vive sob estas condições no presente? O cachorro pode ser entendido simplesmente como símbolo de um poder de combate privado, a exemplo de um tráfico organizado?
Enfim, Metalhead é um episódio sobre o amor de tia! No qual a pureza e ingenuidade de uma criança doente se sobrepõe ao cálculo racional desta tia. Onde a dignidade da morte da criança poderia ser alcançada com um objeto – e, por extensão, nossa dignidade como família e comunidade no gesto de provê-lo.
Só que nossa tia é na verdade uma anti-heroína (assim como seus colegas de furto) uma dessas personagens que cometem ações moralmente questionáveis e/ou são perversas, mas que são as personagens às quais nos vinculamos e “torcemos” durante a narrativa. Aliás, não existem outros personagens na história (este robô poderia ser considerado um personagem?). E uma revelação ao final muda o significado dos símbolos e dá uma nova conotação à história.
O símbolo de pureza que é o ursinho serve não para apresentar a luta pela sobrevivência da essência do que é humano frente a ameaça-robô, mas sim para apresentar a visão cínica que a série como um todo possui da tecnologia. Ele reconfigura o furto, e o transforma de uma pequena e (im)perdoável contravenção em algo bom.
A humanização deste gesto contraventor é conduzida pela direção/roteirista através do imenso perigo que os personagens estão dispostos a enfrentar, e mostram o valor deste objeto a ser furtado, somando-se a uma construção global muito bem feita da humanidade deste grupo. Contra o cenário, contra os robôs, pela ausência de outros personagens, pela ausência de diálogos que não sejam despedidas, pelas emoções que Bella demonstra ao se mutilar, ao ligar para a família, ao amar alguém de quem se despede, e não menos, pela ingenuidade trágica de uma criança.
Dito de outra forma, a tecnologia não tem valor intrínseco. O robô, uma evolução da potência do homem, estará sob juízo em função de algo maior: seu uso social. É uma mensagem de alerta para entusiastas da tecnologia (Alô? Boston Dynamics?).
O nome do episódio, cabeça de metal, é indicativo de que não existe decisão alguma a ser tomada no desenrolar das ações, basta cumprir sem limites, e a todo custo a ordem expressa de matar. Assim o direito à propriedade se torna absoluto. Metalhead, força sem cérebro. Metalhead, duro e oco.
Sabemos que estes cães pertencem a uma organização privada empresarial (metonímia do galpão), cujo proprietário é o dono da mansão, mas não sabemos mais nada dessa sociedade. Falta-nos descobrir se esta terra é sem-lei ou se este tipo de violência mecânica é amparado legalmente. O episódio nada diz sobre isto. Porque, efetivamente, não precisa! Seja na prática ou na teoria, aqui o direito à propriedade é absoluto e o uso do poder inconteste é privado.
Esta forma vaga de discursar deixa mais ampla a aplicação desta reflexão. Nada falta ao episódio para imprimir seu sentido último. Trata-se de todos os cenários de violência mecanizada. Trata-se de um alerta.
E é um posicionamento firme a favor da humanização da sociedade, da prevalência do direito à vida sobre o direito à propriedade, uma preocupação com a automatização da violência e da justiça, e genericamente do sentido social da tecnologia. A propriedade de coisas, e a capacidade de defendê-las contra crimes não é suficiente para encerrar a questão, é preciso ainda uma curadoria social sobre os acontecimentos-crimes.
Ao leitor interessado por estas questões, aponto que a reflexão sobre esta questão provavelmente levará a outras, às quais o Politize, inclusive, já produziu conteúdo.
Até onde um sistema automático de defesa da propriedade pode ser feito sem ferir outros direitos (por exemplo, o da vida)? Existe uma hierarquia de direitos no Brasil? Qual o sentido da propriedade privada no Brasil? O que acontece quando um crime de invasão é feito contra uma propriedade notadamente improdutiva? Um certo sentido da propriedade privada se aplica apenas à propriedade de terras? Existe algum lugar no mundo onde o entendimento social da legítima defesa é de tal forma que permite atirar contra um invasor da propriedade privada mesmo que ele não apresente nenhuma arma, e mesmo que ele não roube nada? [4]
Deixe seus comentários e fique de olho para os novos textos desta série!
Notas:
[1] Fala original “Those fucking Boston Dynamics robots are terrifying, so that in itself was enough that we didn’t have to worry about it. There was no worrying about other movies that had been made about robots that kill you because the technology is so fresh right now and it’s so specific,” Slade said. “We were like, that’s what it is. It’s a military robot. It’s got artificial intelligence. It can problem solve. It’s completely autonomous. That’s terrifying. There we go.” (Indie Review)
[2] Apenas para sugerir alguma leitura, recomendo este artigo da OTAN, um órgão que se beneficiaria tremendamente de armas militares automatizadas.
[3] Mesma entrevista citada na nota 1. Fala original ““If we get to the point where we have military robots guarding our merchandise and killing people, it would seem to me that we have a great lack of humanity. The theme, if there is one, was to do with how important it is to hold onto our humanity. I feel like the most important thing is that you feel it.”
[4] A organização Property Rights Alliance ranqueia anualmente os países em termos de proteção ao direito de propriedade privada. São ao todo 129 países que somam 94% da população mundial e 98% do PIB mundial. https://www.internationalpropertyrightsindex.org/countries